quarta-feira, novembro 29, 2017

A desigualdade económica na América está a ficar cada vez mais tenebrosa

Se o território dos Estados Unidos fosse dividido da mesma forma que a sua riqueza







Heather Long - 22/12/2016


A desigualdade económica na América está a agravar-se

A diferença entre os "haveres" e os "não haveres" está a alargar-se, de acordo com os dados mais recentes desta semana.

Os ricos são máquinas de fazer dinheiro. Hoje, os 1% mais ricos da sociedade - o top 1% - ganha uma média de 1,3 milhões de dólares por ano. É superior ao triplo do ganhavam nos anos 80, quando os ricos ganharam "apenas" 428 mil dólares, em média, de acordo com os economistas Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman.

Entretanto, os 50% da população americana com menor rendimento obtiveram uma média de 16.000 dólares de rendimento antes dos impostos em 1980. Este cenário não mudou durante mais de três décadas.

Como se isto não fosse suficientemente deprimente, viver o American Dream [Sonho Americano] também está a ser cada vez mais difícil de atingir.

Os “Milénios” [jovens que chegaram à vida adulta por volta da mudança do milénio - 2000], nascidos na década de 1980, só têm uma probabilidade de 50% - como atirar uma moeda ao ar - de ganhar mais dinheiro do que os pais, de acordo com novas pesquisas divulgadas este mês no Equality of Opportunity Project [Projeto pela Igualdade de Oportunidades].

Isto não foi sempre assim. Quase toda a gente nos Estados Unidos que nasceu na década de 1940 ficou financeiramente melhor do que os seus pais. Embora o dinheiro não seja a única definição de sucesso, mais riqueza conduz geralmente a casas maiores, mais férias, carros mais sofisticados e mais oportunidades para progredir na vida.

"As perspectivas das crianças de alcançar o "sonho americano" de ganhar mais do que os seus pais caiu de 90% para 50% ao longo do último meio século", escreveram os investigadores no seu relatório.



Está a tornar-se mais difícil aos americanos progredir na vida

Percentagem das crianças nascidas em determinado ano que ganham mais do que os seus pais:



Ricos ficam com uma fatia maior do "bolo"

Os ricos nem sempre ficaram com uma parte tão grande do "bolo". Nos anos 70, uma década geralmente considerada bastante próspera, os 1% de americanos mais ricos ganhavam apenas um pouco mais de 10% de todo o rendimento dos EUA (ou seja, do "bolo").

Com o tempo, os ricos tornaram-se mais afortunados - ou mais gananciosos. Hoje, os 1% mais ricos recebem mais de 20% de todo o rendimento dos EUA.

Como os ricos ganharam mais, outras pessoas na América tiveram que receber menos. Os 50% da população americana com menor rendimento passou a obter pouco mais de 20% do rendimento nacional durante grande parte da década de 1970 para passar a ganhar apenas 12% hoje (2016).

O ponto de viragem começou por volta de 1980, como se vê no gráfico abaixo. Em meados da década de 1990, as fortunas dos 1% mais ricos estavam claramente em ascensão e os rendimentos da metade da população com menor rendimento estavam a diminuir rapidamente.



Os salários NÃO estão a subir para a metade da população com menor rendimento

A Grande Recessão atingiu duramente todas as pessoas. Enquanto as perdas de emprego atingiram a metade da população de menor rendimento, a descida do mercado de acções e a queda acentuada nos valores das casas e da propriedade fizeram com que a riqueza dos 1% mais ricos também caísse dramaticamente.

Por volta de 2009 e 2010, a desigualdade diminuiu ligeiramente porque os ricos perderam muita riqueza.

Mas desde então, a desigualdade cresceu e está a caminho de se tornar ainda maior. Os ricos recuperaram muito mais rapidamente, porque que o mercado de acções aumentou mais de 230%, desde que atingiu o seu ponto mais baixo em março de 2009 e os valores da propriedade voltaram para níveis anteriores à recessão.

Entretanto, os salários mais baixos continuam estagnados.

É suposto o sistema de impostos dos EUA ajudar os pobres. No entanto, mesmo depois dos impostos pagos, a metade da população de menor rendimento ganhou uma média de 25 mil dólares por pessoa em 2014, de acordo com os dados mais recentes. Isto fica apenas um pouco acima dos 20 mil dólares que aquela metade da população ganhou em 1974 (depois de ajustada a inflação).

"O rendimento disparou no topo: em 1980, os 1% mais ricos ganharam, em média, 27 vezes mais do que os 50% de menor rendimento, enquanto hoje eles ganham 81 vezes mais", escreve Piketty, Saez e Zucman.

segunda-feira, novembro 27, 2017

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva, receia que os portugueses deixem de ingurgitar a propaganda das televisões e dos jornais, propriedade do Grande Dinheiro, e que comecem a trocar livremente informação entre si na Internet…



TSF – 23/11 2017

Convidado para participar no debate "Conhecimento, informação e ação política: estão os intelectuais a ser substituídos pelas redes sociais?", o ministro português disse que "o populismo e a desinformação disseminados pelas 'fake news' (notícias falsas) são grandes ameaças à polícia e a sociedade".

"Há mesmo um risco de os intelectuais serem substituídos pelas redes sociais e nós temos que considerar este risco possível como uma ameaça a natureza das nossas democracias".

Sobre as notícias falsas, Augusto Santos Silva avaliou que estas [as redes sociais] alimentam o crescimento da desinformação já que têm três traços preocupantes: a indistinção entre informação e propaganda, a não separação de notícias e boatos e também a junção da apresentação dos factos com as opiniões.[...]


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Mas os receios do ministro Santos Silva podem ser algo exagerados. Ao que consta, a desinformação e as notícias falsas de há muito que entulham os meios de comunicação normais - televisões, jornais, revistas, rádios, etc...



Mário Soares (numa das raras ocasiões em que a boca lhe fugiu para a verdade) acerca dos Meios de Comunicação no Programa "Prós e Contras" [27.04.2009]:

Mário Soares: [...] «Pois bem, agora um jornal, não há! Uma pessoa não pode formar um jornal, precisa de milhares de contos para formar hoje um jornal e, então, para uma rádio ou uma televisão, muito mais. Quer dizer, toda a concentração da comunicação social foi feita e está na mão de meia dúzia de pessoas, não mais do que meia dúzia de pessoas

Fátima Campos Ferreira: «Grupos económicos, é

Mário Soares: «Grupos económicos, claro, grupos económicos. Bem, e isso é complicado, porque os jornalistas têm medo. Os jornalistas fazem o que lhes mandam, duma maneira geral. Não quer dizer que não haja muitas excepções e honrosas mas, a verdade é que fazem o que lhes mandam, porque sabem que se não fizerem aquilo que lhe mandam, por uma razão ou por outra, são despedidos, e não têm depois para onde ir.» [...]


Alguns "comentadores mediáticos"

segunda-feira, novembro 20, 2017

Revista Visão - 24/02/2005 - Prevê-se que em cada cinco crianças nascidas hoje, três jamais arranjarão emprego estável.

Este texto é um excerto de um artigo de Fernando Dacosta publicado na revista Visão 625 -- 24/02/05.

Uma nova forma de desemprego


Prevê-se que em cada cinco crianças nascidas hoje, três jamais arranjarão emprego estável.

Corrompida, a liberdade imergiu-as em novas (outras) desigualdades, indignidades, como as do crescente, insaciável «triângulo negro» da precarização, escravização, exclusão. Direitos penosamente conquistados (na saúde, na assistência, no trabalho, no ensino, no lazer, na cultura) estão a ser dissolvidos em cascatas de perfumado cinismo light. Os jovens que entram no mundo do emprego fazem-no a prazo, a contrato volátil, vendo-se, sem a mínima segurança, impedidos de construir uma vida própria, entre zappings de subtarefas e de pós-formações ludibriadoras.

O problema não tem no sistema vigente, o que poucos ousam admitir, solução visível. Enquanto isso há quem, para se confundir (confundir), culpabilize por ele a baixa taxa de natalidade e, lestamente, se proponha incentivá-la – incentivá-la para aumentar o número de crianças abandonadas?, para disparar a percentagem de jovens sem ocupação?, para renovar de carne fresca e farta os canhões, as camas, os catecismos, os esclavagismos? Prevê-se, com efeito, que em cada cinco crianças nascidas hoje em Portugal, três jamais arranjarão emprego estável.

A queda, por exemplo, de descontos para a Previdência (que tanta ondulação provoca) não advém da falta de trabalhadores com vontade de fazê-los – aos descontos; advém, sim, da falta de trabalho para serem feitos. Há já mais de 600 mil desempregados «seniores» e de 80 mil jovens à procura do primeiro emprego (40 mil licenciados), sem que ninguém, ao que se observa, se dinamize com isso. Nesta fase, as teses «coelheiras» só iriam agravar, não resolver, os problemas demográficos existentes.

Subir a idade da reforma para os 70 anos (aos 50 um trabalhador começa a ser tratado pelos superiores e colegas como um estorvo), aumentar os horários laborais (a produção tornou-se não insuficiente mas excessiva para o mercado), congelar os salários líquidos (enquanto a inflação os baixa) como defendem certos especialistas (que preservam, no entanto, para si retribuições e reformas milionárias) apenas desarticulará o mecanismo social que a humanidade vem, penosamente, construindo no sentido de tornar a existência mais digna e solidária.

As velhas gerações , a sair de cena, agarram-se às influências que julgam, julgavam, manter, merecer. Disfarçando desesperos, socalcam sem resultados patéticas vias sacras de cunhas, súplicas, empenhos, hipotecas, tráficos. As crispações que não sentiram quando, décadas atrás, iniciaram as suas carreiras (eram de outro tipo as, então, sofridas) experimentam-nas agora em relação à insegurança inquietante dos filhos e netos. Ingénuas, acreditaram que bastava, como no seu tempo, um curso superior para se ficar protegido, promovido. Fizeram os seus tirá-lo sem reparar que as universidades se transformaram de clubes VIP em fábricas massificadoras, cada vez mais vazias de elitismos internos e poderes externos.

Só os filhos-família de famílias dominantes (na direita, no centro e na esquerda, na economia, na política e nos lobbies) dispõem de privilégios garantidos, defendidos.

segunda-feira, novembro 13, 2017

Quando e como é que o povo judeu foi inventado




O historiador Shlomo Sand (à esquerda) afirma que a existência das diásporas do Mediterrâneo e da Europa Central é o resultado de antigas conversões ao judaísmo. Para ele, o exílio do povo judeu é um mito, nascido de uma reconstrução a posteriori sem fundamento histórico.

Shlomo Sand nasceu em 1946 em Linz (Áustria) e viveu os dois primeiros anos da sua vida em campos de refugiados judeus na Alemanha. Em 1948 os seus pais emigram para Israel, onde cresceu. Cursou História, tendo começado na Universidade de Telavive e terminado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Desde 1985 lecciona História Contemporânea na Universidade de Telavive. Publicou em francês «L'Illusion du politique. Georges Sorel et le débat intellectuel 1900 » (La Découverte, 1984), «Georges Sorel en son temps», com J. Julliard (Seuil, 1985), «Le XXe siècle à l'écran» (Seuil, 2004) e «Les mots et la terre. Les intellectuels en Israël» (Fayard, 2006).


Jornal Israelita Haaretz - 21/03/2008


Demolindo uma "Mitologia nacional"



Artigo de Ofri Ilani

Tradução por Atrida

Entre a profusão de heróis nacionais que o povo de Israel produziu ao longo de gerações, a sorte não sorriu a Dahia Al-Kahina que chefiou os Berberes de Aures, na África do Norte. Embora tendo sido uma judia indomável, poucos israelitas ouviram alguma vez o nome desta rainha guerreira que, no século VII da era cristã, unificou várias tribos berberes e chegou mesmo a repelir o exército muçulmano que invadiu o norte de África. A razão poderá estar no facto de Dahia Al-Kahina ter nascido numa tribo berbere convertida (ao judaísmo), ao que parece várias gerações antes do seu nascimento, por volta do século VI.


Segundo o historiador Shlomo Sand, autor do livro «Quando e como é que o povo judeu foi inventado» [Quand et comment le peuple juif a-t-il été inventé?] (aux éditions Resling - em hebraico), a tribo da rainha Dahia Al-Kahina assim como outras tribos do Norte de África convertidas ao judaísmo são a principal origem a partir da qual se desenvolveu o judaísmo sefardita. Esta afirmação, referente às origens dos judeus do Norte de África a partir de tribos locais que foram convertidas – e não a partir de exilados de Jerusalém – é apenas uma componente de uma ampla tese desenvolvida na nova obra de Sand, professor do departamento de História da Universidade de Telavive.


Neste livro, Sand tenta demonstrar que os judeus que vivem hoje em Israel e noutros locais do mundo, não são de forma nenhuma os descendentes do antigo povo que vivia no reino de Judeia na época do primeiro e segundo templo. Eles devem a sua origem, segundo ele, a povos diversos que se converteram ao longo da história em diversos locais da bacia do Mediterrâneo e regiões vizinhas. Não apenas os judeus da África do Norte descenderiam na sua maior parte de pagãos convertidos, mas também os judeus iemenitas (vestígios do reino Himiarita, no sul na península arábica, que se convertera ao judaísmo no século IV), e os judeus Asquenazes da Europa de Leste (refugiados do reino Khazar convertido ao judaísmo no século VIII).

Ao contrário de outros «novos historiadores» que procuraram abalar as convenções da historiografia sionista, Shlomo Sand não se contenta em regressar a 1948 ou aos princípios do sionismo, mas remonta a milhares de anos atrás. Shlomo tenta provar que o povo judeu nunca existiu como um «povo-raça» partilhando uma origem comum, mas que é uma multitude variada de grupos humanos que, em momentos diferentes da história, adoptaram a religião judaica. Segundo Shlomo, para alguns pensadores sionistas, esta concepção mítica dos judeus como um povo antigo conduz a um pensamento verdadeiramente racista: «Existiram na Europa períodos onde, se alguém tivesse declarado que todos os judeus pertenciam a um povo de origem não judia, essa pessoa seria julgada imediatamente como anti-semita. Hoje, se alguém ousa sugerir que aqueles que são considerados judeus no mundo (…) nunca constituíram e não constituem nem um povo nem uma nação, seria imediatamente denunciado como uma pessoa que odeia Israel.»


De acordo com Shlomo Sand, a descrição dos judeus como um povo de exilados, errante e mantendo-se à parte, que «vagueando sobre mares e terras, chegaram ao fim do mundo e que, finalmente, com a chegada do sionismo, fazem meia-volta para retornar em massa à sua terra órfã», esta descrição é necessária a uma «mitologia nacional». Tanto como outros movimentos nacionais na Europa, que revisitaram uma sumptuosa idade de ouro para em seguida, graças a ela, fabricar o seu passado heróico – por exemplo, a Grécia clássica ou as tribos teutónicas – a fim de provar que eles existiam há muito, «tal como, os primeiros brotos do nacionalismo judeu se viraram para essa luz intensa cuja fonte era o reino mitológico de David.»


Mas então, quando é que o povo judeu foi realmente inventado, segundo a tese de Sand? «Na Alemanha do século dezanove, num determinado momento, os intelectuais de origem judaica, influenciados pelo carácter 'volkiste' do nacionalismo alemão, atribuíram-se a missão de fabricar um povo "retrospectivamente", com o desejo de criar uma nação judaica moderna. A partir do historiador Heinrich Graetz, os intelectuais judeus começam a delinear a história do judaísmo como a história de um povo que tinha um carácter nacional, que se tornou um povo errante e que finalmente fez meia-volta para regressar à sua pátria.»



Entrevista a Shlomo Sand conduzida por Ofri Ilani

Ofri: De facto, o essencial do seu livro não trata da invenção do povo judeu pelo nacionalismo moderno mas da questão de saber de onde vêm os judeus.

Shlomo: O meu projecto inicial consistia na análise de uma categoria específica de materiais historiográficos modernos e examinar como foi inventada a ficção do povo judeu. Mas assim que comecei a confrontar as fontes históricas deparei-me com contradições. E foi isso que me impeliu: embrenhei-me no trabalho sem saber a que conclusões chegaria. Analisei documentos originais de modo a examinar a atitude de autores antigos - aquilo que haviam escrito a propósito da conversão.

Shlomo Sand, historiador do século XX, tinha até agora estudado a história intelectual da França moderna (no seu livro “L'intellectuel, la vérité et le pouvoir“ [O intelectual, a verdade e o poder], Am Oved ed. , 2000 - em hebraico), e a relação entre o cinema e a história política («Le cinéma comme Histoire» ["O cinema como História] Am Oved, 2002 – em hebraico). De forma pouco comum para historiadores de profissão, ele debruça-se, no seu novo livro, sobre os períodos que ele nunca tinha estudado - geralmente apoiando-se em pesquisadores anteriores que têm avançado com posições não ortodoxas sobre as origens dos judeus.


Ofri: Especialistas da história do povo judeu afirmam que você se ocupa de temas que não compreende e que se baseia em autores que não consegue ler no texto original.

Shlomo: É um facto que sou um historiador da França e da Europa, e não da Antiguidade. Sabia que assim que me ocupasse de períodos antigos como esses, ficaria exposto a críticas assassinas vindas de historiadores especializados nesses campos de estudo. Mas disse a mim próprio que não me poderia apoiar apenas em material historiográfico moderno sem examinar os factos que esse material descreve. Se não o tivesse feito eu próprio, teria sido necessário esperar o tempo de uma geração. Se tivesse continuado a trabalhar sobre França, talvez tivesse obtido uma cátedra na universidade e uma glória provincial. Mas tinha decidido renunciar à glória.

«Após o povo ter sido exilado à força da sua própria terra, permaneceu-lhe fiel em todos os países da sua dispersão e não cessou de orar e esperar o seu regresso à terra para aí restaurar a sua liberdade política»: eis o que afirma o preâmbulo da Declaração de Independência [de Israel]. É também a citação que abre o terceiro capítulo do livro de Shlomo Sand "A Invenção da Diáspora". De acordo com Sand, o exílio do povo judeu da sua própria terra nunca teve lugar.


«O paradigma supremo do exílio era necessário para que se construísse uma memória de longo prazo na qual um povo-raça imaginário e exilado é colocado na continuação directa do "Povo do Livro" que o antecedeu», Sand explica. Sob a influência de outros historiadores que se debruçaram nos últimos tempos sobre esta questão, ele afirma que o exílio do povo judeu é, na origem, um mito cristão, que descreve o exílio como uma punição divina castigando os judeus pelo pecado de terem rejeitado o evangelho cristão.

Shlomo: Comecei a procurar livros sobre o exílio – um acontecimento fundador na História Judaica - quase como o genocídio; mas, para meu grande espanto, descobri que não existia literatura sobre o tema. O motivo é que ninguém exilou um povo desta terra. Os Romanos não deportaram povos e não o poderiam ter feito mesmo que o pretendessem. Não tinham nem comboios nem camiões para poder deportar populações inteiras. Uma logística dessas não existiu antes do século XX. Foi, de facto, a partir daí que surgiu o meu livro: da compreensão que a sociedade judaica não tinha sido dispersa nem exilada.


Ofri: Se o povo não foi exilado, está na realidade a afirmar que os verdadeiros descendentes dos habitantes do reino da Judeia são os Palestinianos.

Shlomo: Nenhuma população se mantém pura ao longo de um período de milhares de anos. Mas a possibilidade de que os Palestinianos sejam os descendentes do antigo povo da Judeia são bastante maiores que a possibilidade que você ou eu [ambos judeus] o sejamos. Os primeiros sionistas, até à insurreição árabe [1936-1939], sabiam que não existira nenhum exílio e que os Palestinianos eram os descendentes dos habitantes da região. Eles sabiam que os camponeses não partem de um local a não ser que sejam expulsos. Até Yitzhak Ben Zvi, o segundo presidente do Estado de Israel, escreveu em 1929 que "a grande maioria dos fellahs (camponeses árabes) não são originários dos invasores árabes mas, muito antes disso, dos fellahs judeus que constituíam a maioria da região".


Ofri: E como é que milhões de judeus apareceram à volta do Mediterrâneo?

Shlomo: O povo não se disseminou, foi a religião judaica que se propagou. O judaísmo era uma religião prosélita (que convertia outras pessoas à sua religião). Contrariamente ao que se pensa, no judaísmo antigo exista uma vontade muito forte de converter. Os Hasmoneanos foram os primeiros a começar a criar grande número de judeus por meio de conversões massivas, sob a influência do helenismo. São estas conversões, desde a revolta dos Hasmoneanos até à de Bar Kochba, que prepararam o terreno para a posterior difusão massiva do Cristianismo. Após o triunfo do Cristianismo, no século IV, o movimento de conversão ao judaísmo foi travado no mundo cristão e houve uma diminuição brutal do número de judeus. Pode-se supor que muitos judeus convertidos na zona mediterrânica se tenham tornado cristãos. Então, o judaísmo começa a difundir-se noutras regiões pagãs - por exemplo, no Iémen e no norte de África. Se isto não tivesse sucedido - se o judaísmo não se tivesse continuado a converter no mundo pagão – teria ficado uma religião completamente marginal, se é que não teria mesmo desaparecido.


Ofri: Como é que chegou à conclusão que os judeus do Norte de África são descendentes de Berberes convertidos?

Shlomo: Interroguei-me por que razão comunidades judaicas tão importantes podiam ter surgido em Espanha. Reparei então que Tariq Ibn-Ziyad, comandante supremo dos muçulmanos que invadiram a Espanha, era berbere e que a maioria dos seus soldados eram também berberes. O reino berbere judeu de Dahia Al-Kahina fora vencido apenas 15 anos antes. E a verdade é que há diversas fontes cristãs que declaram que muitos de entre os invasores de Espanha eram convertidos ao judaísmo. A origem da grande comunidade judaica de Espanha eram estes soldados berberes convertidos ao judaísmo.

Segundo Sand, o contributo demográfico mais decisivo para a população judaica no mundo deu-se na sequência da conversão do reino khazar - o vasto império estabelecido na Idade Média nas estepes circundantes do rio Volga e que, no auge do seu poder, dominava desde a actual Geórgia até Kiev. No século VIII os reis khazares adoptaram a religião judaica e fizeram do hebreu a língua escrita do reino. A partir do século X o reino estava já enfraquecido e no século XIII foi derrotado em toda a linha pelos invasores mongóis e o destino da sua população judaica perde-se então nas brumas.


Shlomo Sand revisita a hipótese, já avançada por historiadores dos séculos XIX e XX, segundo a qual os khazares convertidos ao judaísmo seriam a principal origem das comunidades judaicas da Europa de Leste: «No início do século XX há uma grande concentração de judeus na Europa de Leste; só na Polónia são três milhões», afirma. «A historiografia sionista pretende que a sua origem provém da comunidade judaica mais antiga da Alemanha, mas essa historiografia não explica por que motivo o reduzido número de judeus originários da Europa Ocidental - de Mainz e Worms - pôde fundar o povo yiddish da Europa de Leste; na verdade, os judeus da Europa de Leste são uma mistura de khazares e eslavos rechaçados para Ocidente


Ofri: Se os judeus da Europa de Leste não são originários da Alemanha porque é que falavam yiddish, que é uma língua germânica?

Shlomo: Os judeus, a leste, formavam um grupo que dependia da burguesia alemã e foi dessa forma que adoptaram palavras alemãs. Aqui, apoio-me nas investigações do linguista Paul Wechsler, da Universidade de Telavive, que demonstrou que não existe ligação etimológica entre a língua judaica alemã da Idade Média e o yiddish. O Rabi Yitzhak Bar Levinson, já em 1928, dizia que a antiga língua dos judeus não era o yiddish. Até Ben Tzion Dinour, pai da historiografia israelita, não tinha problemas em apontar os khazares como a origem dos judeus da Europa de Leste, descrevendo a Khazaria como a "mãe das comunidades de exílio" na Europa de Leste. No entanto, desde 1967 que qualquer pessoa que fale dos khazares como sendo os antepassados dos judeus da Europa de Leste é encarado como bizarro e delirante.


Ofri: Na sua opinião, porque é que a ideia de uma origem khazar é tão ameaçadora?

Shlomo: É evidente que o receio se prende com a contestação do direito histórico sobre esta terra [Israel]. Revelar que os judeus não vieram da Judeia parece reduzir a legitimidade da nossa presença aqui. Desde o início do período de descolonização, os colonos não podem vir simplesmente dizer: «viemos, vencemos e agora somos daqui» - como também afirmaram os americanos, os brancos da África do Sul e os australianos. Existe um receio profundo que seja posta em causa o nosso direito à existência.


Ofri: E esse receio não tem fundamento?

Shlomo: Não. Não creio que o mito histórico do exílio e da errância seja a origem da minha legitimidade em estar aqui [em Israel]. Para mim é indiferente saber que sou de origem khazar. Não receio este abalar da nossa existência pois penso que a natureza do Estado de Israel ameaça de forma bem mais grave a sua existência. O que pode fundar a nossa existência aqui não são direitos históricos mitológicos mas o facto de virmos a estabelecer aqui uma sociedade aberta, uma sociedade do conjunto de todos os cidadãos israelitas.


Ofri: No fundo, afirma que não existe um povo judeu.


Shlomo: Não reconheço um povo judeu internacional. Reconheço um "povo yiddich" que existia na Europa de Leste, que não é uma nação mas onde é possível ver uma civilização yiddish com uma cultura popular moderna. Penso que o nacionalismo judeu se desenvolveu a partir desta base yiddish. Reconheço igualmente a existência de uma nação israelita e não contesto o seu direito à soberania. Mas o sionismo, tal como o nacionalismo árabe ao longo dos anos, não estão preparados para o reconhecer.



Do ponto de vista do sionismo, este Estado não pertence aos seus cidadãos, mas sim ao povo judeu. Reconheço uma definição de Nação: um grupo humano que pretende viver de forma soberana. Mas a maioria dos judeus em todo o mundo não quer viver no Estado de Israel, apesar de nada os impedir a que o façam. Assim, não se pode ver neles uma nação.



Ofri: O que é que existe de perigoso no facto de os judeus imaginarem que pertencem a um só povo? Por que razão isso seria errado?


Shlomo: No discurso israelita sobre as suas raízes existe uma dose de perversão. É um discurso etnocêntrico, biológico, genético. Mas Israel não tem existência como estado judaico: se Israel não se desenvolve e se transforma numa sociedade aberta e multicultural, teremos um Kosovo na Galileia. A consciência de um direito sobre este local deve ser mais flexível e variada e se eu contribuí com este livro para que eu próprio e os meus filhos possamos viver aqui com os outros, neste Estado, numa situação mais igualitária, terei feito a minha parte.



Devemos começar a trabalhar duramente para transformar este local que é o nosso numa república israelita, onde nem a origem étnica nem a crença serão pertinentes à luz da lei. Quem conhece as jovens elites entre os árabes de Israel pode constatar que eles não concordam em viver num Estado que proclama que não é o seu. Se fosse palestiniano rebelar-me-ia contra um tal Estado, mas é também como israelita que me rebelo contra este Estado.




Ofri: A questão que se põe é saber se, para chegar a tais conclusões, seria necessário ir até ao reino dos Khazars e ao Reino Himiarita.


Shlomo: Não escondo que sinto um grande incómodo em viver numa sociedade em que os princípios nacionais que a dirigem são perigosos e que esse incómodo serviu de motor para a minha pesquisa. Sou cidadão deste país mas também sou historiador e, enquanto historiador, tenho obrigação de escrever a História e de examinar os textos. Foi isso que fiz.


Ofri: Se o mito do sionismo é o mito do povo judeu que retornou do exílio a esta terra, qual será o mito do Estado que imagina?

Shlomo: Um mito de futuro é, a meu ver, preferível a mitologias do passado e de se fechar em si próprio. Para os americanos, e também para os europeus de hoje, o que justifica a existência de uma Nação é a promessa de uma sociedade aberta, avançada e opulenta. Os condimentos israelitas existem mas há que lhes acrescentar, por exemplo, festas que reúnam todos os israelitas. Reduzir um pouco os dias comemorativos e acrescentar dias consagrados ao futuro. E também, por exemplo, acrescentar uma hora para comemorar a Nakba (literalmente, a "catástrofe" – o termo palestiniano para aquilo que aconteceu quando Israel foi fundado], entre o Dia do Senhor e o Dia da Independência.
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segunda-feira, novembro 06, 2017

Quadratura do Círculo [19-10-2017] - Pacheco Pereira: “Eu quero saber o que é que criou 500 fogos [no dia 15 de Outubro] naqueles concelhos.”

Quadratura do Círculo [19-10-2017] - Pacheco Pereira: "Eu, por exemplo, gostava de saber, gostava que fosse feito um inquérito ao que aconteceu nestes dias. Porque há cada vez mais uma tese conspirativa sobre os fogos… Eu não estou certo de que essa tese conspirativa de alguma maneira tenha sentido, mas gostava de saber mais sobre o que aconteceu. Porque, há aqui também um aspecto que não está esclarecido… Eu quero saber o que é que criou 500 fogos naqueles concelhos." [46:27 m – 49:00 m]




http://sicnoticias.sapo.pt/programas/quadratura/2017-10-20-Quadratura-do-Circulo-19-10-2017